A Escrita Refinada de Edward Said

Que surpresa inesperada é descobrir que aquele livro que você anda procurando encontra-se na estante ao alcance de suas mãos. A responsável por isso foi a tal da taxa de bancada, que nada mais era do que uns 1.300,00 reais (valores de 2004) destinados pelo Cnpq a seus bolsistas para a compra de obras de referência para a pesquisa que estivessem desenvolvendo – gastos, bem entendido, que deveriam ser devidamente comprovados através de nota fiscal e, eventalmente, em caso de não uso, retornados à fonte de fomento. Com isso, foram quatro anos comprando livros, alguns deles nunca lidos. Nestas compras entraram dois títulos de Edward Said. Um com ensaios, em meio a umas poucas memórias, e outro estritamente memorialístico, que levavam respectivamente os títulos de “Reflexões sobre o Exílio” (Companhia das Letras, 2001) e “Fora do Lugar” (de novo da Companhia da Letras, esse de 2004), ambos adquiridos na Fnac, na Barra da Tijuca.

Por conta dos conflitos recentes no Oriente Médio, o nome de Said se impôs imediatamente e com a lembrança dele a vontande de voltar ao convívio com seus escritos que me ajudaram e, mais do que isso, me fascinaram durante o doutorado. Acabei me ocupando e lendo predominantemente seus textos de crítica literária e só agora tive contato com suas obras de tom memorialístico e textos estritamente políticos.

Said foi, dentre todos os ensaístas lidos no doutorado, o predileto. E olha que a concorrência era grande, robusta e vigorosa: Antonio Candido, Afrânio Coutinho, Roberto Schwarcz, para ficarmos apenas com estudiosos brasileiros consagrados. Imagino que não seja incorreto afirmar que ele certamente está entre os críticos literários mais fundamentais a surgir na segunda metade do século XX. Além disso, acabou virando um ferrenho militante político e emblema maior da luta pró-palestina. Sofreu, junto com sua família (esposa e um casal de filhos), persistentes ameças e seu escritório na Universidade de Columbia em Nova York, onde lecionou a maior parte de sua vida profissional realizando os trabalhos mais significativos de sua irreparável trajetória acadêmica, chegou mesmo a ser vandalizado. Por sua peculiar trajetória pessoal acabou sendo também um observador privilegiado e ativista fundamental para o entendimento das reais razões por trás das hostilidades, choques e atrocidades cometidas por israelenses e palestinos, iniciadas há décadas na região e que vieram a se intensificar recentemente.

Nascido em 1935, em Jerusalém, de uma família palestina cristã (de orientação protestante por parte de pai e batista por parte de mãe), Said foi, como seus pais e parentes, forçado a abandonar definitivamente a cidade em que nasceu, e que visitava com frequência, para se fixar definitivamente no Cairo, como resultado do plano de partilha do território palestino por resolução da ONU que criou o estado de Israel e pôs fim aos anos de ocupação colonialista britânica – ocupação iniciada com o fim da Primeira Grande Guerra.

Por ironia do destino, Wadie Saïd, seu pai, pouco antes da eclosão do conflito mundial que durou de 1914 a 1918, imigrou muito jovem e ainda solteiro para os Estados Unidos por não querer viver na Palestina dominada por árabes otomanos. Se alistou na Força Expedicionária Americana e virou cidadão norte-americano com o fito exclusivo de lutar pela expulsão dos árabes otomanos da região em que, assim como seu único filho homem a sobreviver (Wadie e sua esposa perderam um primeiro menino no parto), nascera. Ao contrário do planejado, acabou sendo enviado para a frente de guerra na França, de onde retornou ferido.

Depois de regressar à Palestina, Wadie se casou com Hilda, também uma árabe cristã, mas de família libanesa, nascida na cidade de Nazaré, ainda território palestino na época do casamento (1930). Wadie se tornou um empreendedor com negócios primeiro com parentes na Palestina e depois no Egito na papelaria e loja de móveis e utensílios de escritório The Standard Stationery Company. Por esse motivo, foi nas cidades de Jerusalém e do Cairo o lugar em que Edward, falante de árabe e inglês em casa, veio a cursar os primeiros anos de sua formação como estudante, sempre em escolas símbolo do colonialismo inglês, como as as inglesas Gezira Preparatory School, St. George´s School e Victoria College, ou de influência norte-americana, como a Cairo School for American Children.

Anos depois, assim como uma de suas quatro irmãs, Rosemary, iria estudar nos Estados Unidos. Said tinha 16 anos quando partiu para a América do Norte para completar seus anos de formação no ensino médio. A justificativa era que, ainda que fosse filho de um cidadão naturalizado americano, por não ter nascido no país, precisava ter vivido pelo menos 5 anos em solo americano até completar os 21 anos de idade para também ganhar a sua cidadania estadunidense. Foi fechar sua formação básica na Mount Hermon School na área rural do estado de Massachusetts.

Seria uma mudança definitiva para os Estados Unidos com retornos esporádicos para visitar sua família no Egito e no Líbano. Colou o grau universitário em língua inglesa pela Universidade de Princeton e realizou seu mestrado e doutoramento em Harvard. No começo de seus estudos literários se interessou pela prosa de André Gide e Graham Grenne e em seguida pela obra de Joseph Conrad. Defendeu sua tese de doutoramento em Harvard discutindo o papel da autobiografia nos escritos do mais famoso autor polonês a escrever em língua inglesa.

Em 1963, começaria a dar aula de literatura comparada na Universidade de Columbia e a tese sobre Conrad seria revisada e editada no ano de 1966. Levaria o título de “Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography” (2008, Columbia University Press). Central nesse trabalho, como no subsequente “Beginnings, Intention and Method” (1975, Columbia Univesity Press), estava a preocupação com a arte de escrever. Muito interessado no assunto, Said iria traçar e identificar as características da escrita estrangeirizada do polonês Conrad. É notório em Conrad, um outsider com o qual Said parecia se identificar, como o autor de “Coração das Trevas” escamoteia com dedicação e habilidade não apenas em suas cartas (foco do interesse de Said), mas em seus prefácios e introduções sua luta por se expressar em um idioma estrangeiro. Fato é que, apesar disso, acaba por construir uma obra que o consagraria aos olhos de seus leitores como um dos mais importantes autores da literatura universal.

Quando a obra de Conrad, especialmente “O Coração das Trevas”, começa a ser tachada de racista e eurocêntrica, Said vai a seu socorro para tentar salvar as qualidades fundamentais do legado do autor de “Lord Jim”, “A Linha de Sombra”, “Nostromos” e tantas outras obras importantes que integram o cânone de literatura de língua inglesa. Said teria como trunfo para ajudar em sua argumentação estar preparando um dos livros essencias para a discussão sobre a temática pós-colonialista: “Orientalismo”, que viria a ser editada em 1978 – discussão que teria sequência com “Cultura e Imperialismo”, em 1993.

Em um posfácio para uma tradução de 2019 de “O Coração das Trevas”, lançado pela editora Ubu, Bernardo Carvalho problematiza o entrevero entre um ensaio de 1975 do escritor e renomado autor nigeriano Chinua Achebe (o primeiro trabalho a acusar o romance de Conrad de racista e eurocêntrico) e as observações elogiosas de Said. Bernardo, assim como Said, tenta, e de certa forma até consegue com certa classe, mostrar as ambivalências da obra mais falada de Conrad. O autor de “Nove Noites” recorre a um ensaio excelente de Said (está em “Reflexões sobre o Exílio”), em que o crítico palestino aproxima o autor polonês de um filósofo romancista que parece muito distante dele, Nietzsche, para lembrar o “virtuosismo da linguagem elusiva de Conrad”.

Para Bernardo Carvalho, Conrad é um escritor que “desafia o mito dos nacionalismos” e que “sugere uma identificação desestabilizadora entre opostos”. “A busca de Marlow”, segundo o escritor brasileiro, “é (…) o contrário do reconhecimento de nomes, valores e identidades fixas, predeterminadas e apaziguadoras”. “Quanto mais procura o “outro” (o que está fora de si, em mais de um sentido), mais se aproxima de si.” Assinala ainda que em “O Coração das Trevas” “progresso e civilização já são elementos constitutivos da barbárie”, para conlcuir que “o Congo é aqui. O Congo sempre esteve em nós.”

De qualquer maneira, em trecho de “Duas Visões sobre o Coração das Trevas”, do livro “Cultura e Imperialismo”, Said já tentara minimizar as podenrações de Chinua Achebe lembrando que como “uma criatura do seu tempo, Conrad não poderia (em “O Coração das Trevas”) dar aos nativos sua liberdade, apesar de sua severa crítica ao imperialismo” – imperialismo belga, bem entendido, uma vez que Conrad não parece ter muitos problemas com o imperialismo britânico.

Não acho que valha a pena misturarmos autor, suas criações e posições políticas pessoais para negar as qualidades literárias de sua obra. Do contrário, seríamos forçados a condenar quase a totalidade das obras de Shakespeare por sua reafirmação do poder monárquico através da condenação daqueles que tentam usurpar um trono. De minha parte, sempre criei certa antipatia pela pessoa e por alguns aspectos das obras de Conrad. Se contrastarmos o escritor polonês com um autor que mesmo o antecedeu historicamente como o americano Herman Melville, veremos que os dois, que tiveram contato e viveram momentos intensos com aborígenes, sairam de suas respectivas experiências com visões bem distintas sobre os povos nativos que conheceram em suas viagens. Conrad encarou e veio a retratar muito do que viu como uma passagem sombria de sua vida e da qual parecia querer se manter afastado. Melville, que chegou a ser feito refém por nativos, encarava sua experiência, apesar de tudo o que passou, como uma vivência a ser festejada, e assim o fez de forma insuperável em vários dos seus livros. Por isso, entre o marinheiro Melville e o capitão Conrad, sinto uma afinidade maior em navegar os mares do mundo literário em companhia do autor de “Moby Dick”.

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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