Eterno Retorno

Imagino que viva num eterno retorno nietzschiano que me leva sempre de volta a determinados autores. Refiro-me a algumas leituras do segundo semestre do ano passado que incluíram as cartas de Ana Cristina César endereçadas a Luiz Augusto Ramalho, estão no volume “Amor mais que Maiúsculo” (Cia das Letras, 2022), o Geraldinho Carneiro de “Folias de Aprendiz” (do selo História Real da Intrínseca, 2022) e o tijolaço de Thomas Piketty “Capital e Ideologia” (Intrínseca, 2019), cujas 48 horas de narração (em leitura de Richard Adamson para o catálogo da Audible) rodaram no media player do carro em viagens para a praia do Sapê em Ubatuba (Pousada do Grego, lindo lugar, mas não recomendo a pousada), Itaipava (Quinta da Paz e Altenhaus) e para Geribá em Búzios (Corais e Conchas e Maravista).

Ana C. é uma obsessão antiga. A garotada que está descobrindo a escritora por agora a tem classificado como uma autora difícil. Especialmente a partir do momento em que “A Teus Pés” virou assunto de vestibular. Depois de passar por exame acadêmico minucioso por parte dos entendidos, os livros da escritora entraram também para a lista das obras prediletas de booktubers que não perderam tempo em resenhá-las. Mas, será que de fato no campo da ficção e da poesia especificamente pode existir um autor cuja leitura seja “difícil” e exija dedicação em busca de uma compreensão precisa e transcendente de seu real sentido? Em áreas de conhecimento como a filosofia, por exemplo, isso é justificável. Em um Hegel, um Heidegger, um Foucault, um Derrida, nos confrontamos com passagens áridas e que pedem estudo para seu pleno entendimento. Mas, no espectro da ficção de maneira geral, isso simplesmente não existe. Talvez o que ocorra no caso da poesia de Ana C., o que é verdadeiro para qualquer obra de ficção, é que é necessário que haja uma identificação de alguma ordem com o que se lê.

O que está acontecendo com Ana C. guarda relação com algo já muito discutido e que foi assunto do ensaio “Contra a Interpretação”, de Susan Sontag, texto que dá título a um livro homônimo. Trata-se de um dos muitos insights ensaísticos da autora americana escrito no começo dos anos 60, época em que a crítica iniciante de assuntos tão variados quanto literatura, fotografia, cinema, teatro, artes plásticas, marcava com classe insuperável presença em publicações badaladas como Partisan Review, The New York Review of Books, Book Week e Evergreen Review, ou em revistas mais rasteiras como Moviegoer e Mademoiselle, entre outras – aparecem coligidos em “Susan Sontag, Essays of the 1960´s & 70´s”; The Library of America, 2013.

Em “Contra a Interpretação”, Sontag, em mais uma de suas incursões de assombroso refinamento, faz uma extensa apreciação sobre como se deu a busca por se interpretar obras de artes ao longo da história. Do período da Grécia Antiga, a autora destaca de início a semelhança da percepção da arte como mimesis (imitação), presente tanto em Platão quanto em Aristóteles. Depois, no entanto, a ensaísta lembra que, ao contrário da perspectiva negativa do autor de “O Mito da Caverna” (aquele que colocou o poeta para correr de sua república), a visão da “Arte Poética” aristotélica reconhece um caráter pedagógico e positivo na purgação catártica que ocorre durante fruição artística (Aristóteles falava do teatro mais especificamente). Da antiguidade grega, Sontag cruza um longo percurso e chega às avaliações que marcaram o século XX, nas abordagens de matiz freudiano a partir de teorias psicanalíticas. Aponta os excessos e mesmo falácias dos pontos de vista analíticos que se arvoram a buscar desvendar o que estaria por trás de cada obra. Propõe ao leitor ao final, e como alternativa, que, em lugar de procurar uma hermenêutica da obra de arte, este se lance a uma, na sua opinião mais proveitosa, análise erotizada do artefato artístico.

De qualquer forma, aos que estiverem atrás de justificativas e quiserem encontrar sinais esclarecedores sobre a escrita poética de Ana C., apoiados em pareceres de representantes do meio acadêmico, recomendo o ensaio “Até Segunda Ordem, Não me Apaguem Nada”, de (Maria) Flora Süssekind (escrito em1989 e publicado em 1995 pela 7Letras). Flora escreveu este ensaio quando pouca coisa do acervo de muitos inéditos da escritora, hoje preservados sob a guarda do Instituto Moreira Salles, estava disponível. Contou com a ajuda da dedicada mãe de Ana, Maria Luiza Cruz, que guardou durante anos tudo o que a escritora deixou. Consultou a famosa pasta rosa (que reunia os “rejeitados, inacabados e antigos”), os cadernos pessoais da poetisa (“Challenge”, “Oxford Project Book” e do gênero “Papelaria União”), bem como os registros da viagem da autora a Portsmouth e Colchester, durante o período, no final dos anos 1970, em que voltou pela segunda vez à Inglaterra – mais de uma década depois da época das cartas de “Amor mais que Maiúsculo”.

Süssekind faz basicamente duas observações sobre a escrita da poetisa. A primeira delas, um tipo de abordagem que se tornaria corrente e mesmo repetitiva na crítica literária a partir dos anos 1980, é aquela que identifica a intertextualidade como marca da poesia de Ana C. Intertextualidade esta que se daria tanto com a poesia de seus companheiros da geração mimeógrafo como com autores de sua preferência (Manuel Bandeira, Elizabeth Bishop e Carlos Drummond de Andrade), bem como com escritores por ela traduzidos (Emile Dickson, Gertrude Stein, Katherine Mansfield e T. S. Eliot, entre outros).

A segunda observação em forma de questionamento, era se deveríamos tomar sua prosa-poética como uma rasgada confissão autobiográfica ou, na opinião divergente de Flora, como uma voz alterada e não propriamente como um auto-retrato. Süssekind questiona a visão do auto-retrato e chega mesmo a criticar a sedução voyeurística com que os leitores costumam se aproximar da poesia de Ana C a partir de uma identificação com a autora. Bom, sinto informar, mas faço parte deste grupo. E isso talvez aconteça, porque sou adepto e defensor intransigente dos escritos confessionais, do contrário não teria dedicado alguns anos de minha vida a estudar a obra de Nelson Rodrigues.

Minha perspectiva de leitor de tudo o que Ana C. escreveu em seus curtos 31 anos de vida, passa pelo fato de ter morado no mesmo edifício em que ela viveu boa parte de sua curta existência, da leitura da biografia que o amigo da poetisa Ítalo Moriconi escreveu (“Ana Cristina César – Perfis do Rio”, Relume Dumará – Rio Arte; 1996) e de todo o material que o IMS tem editado. É por aí que vai a minha compreensão e vivência de sua poesia fragmentária assim como a sedução irresistível por toda a obra que ela nos deixou.

E isso se refere a tudo, desde o talento da poetisa que, quando ainda não era alfabetizada, ditava seus versos para que a mãe anotasse (transbordaria para as publicações da jornalista mirim no seu jornal caseiro “O Mundo”) e para a redatora de uma autobiografia precoce, publicada por sua editora também caseira, a Problemas Universais. Essa fascinação pela escrita, e particularmente pela escrita autobiográfica, é para mim reforçado na fruição de sua vasta correspondência epistolar. A qualidade de seus textos é, para muitos pelo visto, tanta, que se justifica até a publicação do que ela registrou compulsivamente quando ainda se encontrava na casa do seus 17, 18 anos de idade como no volume das cartas inéditas de “Amor mais que Maiúsculo”. O livro foi lançado em junho do ano passado para lembrar os 70 anos de nascimento da escritora com merecida pompa em evento no Instituto Moreiras Salles.

Podemos conjecturar quais as reações de Ana Cristina a essas observações sobre sua escrita. Como acredito que “todo imparcial é um vigarista”, imagino que a poetisa me apoiaria e muito provavelmente reagiria como Susan Sontag. Pediria desta forma a seus leitores que fruíssem sua obra menos com o intelecto e mais com sua sensibilidade pessoal. A aproximação da verve da poetisa com a escritora americana foi por sinal percebida por Miss Purdy, sua professora de história do programa de intercâmbio da igreja evangélica, no International Christian Youth Exchange, quando Ana C. esteve na Inglaterra no final do anos 1960, justo o período destas cartas agora coligidas e organizadas em um trabalho meticuloso por Rachel Valença com uma grande equipe do IMS e da editora Companhia das Letras.

Miss Purdy já reconhecia ares de rebeldia na moçoila e passou a tomá-la como uma “S.S. em miniatura ou em potencial”, nas palavras de Ana C.. Fato que fez com que a professora se desse ao trabalho de passar à aluna uma entrevista e um artigo crítico à ensaísta americana, ambos publicados pela imprensa inglesa. Por coincidência, ao final do curso, em uma viagem pelo Mediterrâneo em que esteve com parentes, Ana C. viria a esbarrar com o ensaio de “Contra a Interpretação”. Conta ela, em um trecho de “Amor mais que Maiúsculo”: “Cheguei de surpresa na casa da prima na praia, visitamos o litoral sul todo, Capri, Sorrento (roubei um livro interessantíssimo lá: AGAINST INTERPRETATION”, da crítica americana Susan Sontag)…”. O título em caixa alta, quando ainda não existiam os analfabetos funcionais de Internet, é recurso expressivo da autora. Alguns talvez reclamem dos excessos de uma alma apaixonada (as cartas, afinal, tinham caráter privado), mas mesmo aí a forma elaborada e surpreendentemente inovadora com que tudo é expresso ganhará o leitor.

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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