Isso é que é Vida

Ah, o paraíso. Herman Melville bem sabia que ele estava nos Mares do Sul. Especialmente para alguém cuja primeira viagem, aos 19 anos, teve como destino a gelada Liverpool (experiência que rendeu lembranças entre o entusiasmo e a decepção para o livro “Redburn”). O jovem Herman, viajou em meio à tripulação do pequeno navio Saint Lawrence, que levava algodão colhido no sul dos Estados Unidos para servir de matéria prima para a indústria manufatureira inglesa (em Manchester, Birmingham e Leeds) e um reduzido número de passageiros, aos quais o aprendiz Melville serviu como criado de camarote. Além de “Redburn”, essa viagem ajudaria como motivo para um escrito ficcional inacabado e editado postumamente, o livro “Billy Budd, marinheiro”, famoso por sua carga homoafetiva (maior talvez do que a de “Moby Dick”; inspirou o “Querelle”, de Jean Genet), razão pela qual acabou se transformando em assunto predileto a ser tratado pelos adeptos de estudos literários pós-coloniais e de gênero.

O primeiro contato com o Pacífico veio, porém, na segunda experiência marítima do escritor, aos 21 anos, agora a bordo do baleeiro Acushnet, no qual embarcou não como oficial de marinha como era esperado por sua posição social, mas, em consequência da falência dos negócios de sua família logo em seguida a morte de seu pai (Melville perdeu o pai aos 12 anos), como um reles marinheiro. Foi nesta condição que ele saiu do porto de partida dos baleeiros americanos do século XIX, em Nantucket, New Bedford, cruzou o Cabo Horn e chegou ao arquipélago de Galápagos, alguns anos depois de Charles Darwin.

Quase nada desta viagem, antes da chegada às Encantadas, apareceria nos textos do futuro escritor, à exceção da menção a uma parada no Rio de Janeiro como comentário aleatório em um trecho de um de seus primeiros livros, cidade em que o Acushnet lançou âncora para despachar pelo brigue Tweet, com destino a Baltimore, a carga de óleo das cachalotes pescadas até chegar ao Rio. A estada nas Encantadas, no entanto, surgiriam bem ficcionalizadas em escrito que leva o segundo nome com que os espanhóis se referem ao conhecido conjunto de ilhas celebrizado por Darwin. Galápagos não o surpreendeu tanto por sua beleza, mas pela natureza vulcânica e inóspita de um lugar em que só sobrevivem tartarugas gigantes, pássaros, pinguins e lagartos.

A partir dali, no entanto, viriam as maravilhas que nos aguardam nas ilhas do Pacífico Sul. E Melville conheceu muitas delas. Esteve, por exemplo, em Nukuhiva, no arquipélago das Ilhas Marquesas, onde se refugiou depois de desertar o Acushnet por desentendimentos com o capitão do navio baleeiro, Valentine Pease. Combinou a fuga com o companheiro Richard Tobias Greene (Toby) e partiram em aventura pelas matas tropicais em direção ao vale onde viviam os temidos typees. Capturados pelos nativos, os marinheiros Melville e Toby conviveram com aborígenes de corpos tatuados e participaram dos rituais desta tribo selvagem com sua fama de antropófagos (Melville, com a perna ferida, mais do que Toby que logo partiu em fuga). Essa convivência com os aborígenes locais foi vivida com muito medo, ainda que com extrema admiração e fascínio por Melville.

Apesar dos apertos por que passou para conseguir escapar de uma tribo que cultivava com requintes semelhantes ao dos tupinambás a deglutição de humanos, não carregou nenhum trauma desta experiência. Se colocarmos lado a lado os relatos do que Melville viveu com os de outro escritor que também navegou o pacífico e que teve contato com grupos selvagens como Joseph Conrad, perceberemos bem a distância entre o horror e o trauma que marcaram o autor de “Coração das Trevas” e de “Lord Jim” e como eles contrastam com o deslumbramento com os nativos e sua cultura que transparece nas obras do escritor de “Moby Dick”.

Das Ilhas Marquesas, Melville conseguiu seguir para o Taiti no barco australiano Lucy Ann, tripulado por um comandante doente que tinha como subordinado direto um auxiliar que vivia bêbado. Tomou parte em um motim a bordo do Julia (ou Little Jule, os nomes falsos como se refere ao barco) e por isso ficou preso no Taiti, talvez a mais bela e maior ilha da Polinésia Francesa. As passagens pelas Ilhas Marquesas e pelo Taiti apareceriam registrados em dois de seus escritos autobiográficos que foram seus únicos livros de sucesso enquanto esteve vivo, “Typee – um olhar sobre a vida na Polinésia” e “Omoo – uma narrativa de aventura nos mares do sul”.

Passou pouco tempo na “prisão” a céu aberto em que ficou cuidando de plantações no Taiti e saiu de lá caminhando para ingressar no navio baleeiro Charles & Henry que o levaria ao Havaí (onde esteve em Maui e Honolulu). A volta pra casa aconteceu com a fragata de guerra Estados Unidos, similar ao USS Constitution que ainda flutua no mar, mas que já não mais existe. Foi nele que Melville passou pela segunda vez pelo Rio de Janeiro. Aqui comemorou seu aniversário de 25 anos no dia 1 de agosto de 1844 ancorado próximo ao Pão de Açúcar e sentindo a brisa e a natureza “com todos os sabores do Trópico de Capricórnio”. No Rio, participou com a tripulação da recepção cheia de pompa a bordo do navio de guerra a dois convidados ilustres, o imperador Dom Pedro II e seu cunhando, o Conde d´Eu.

Fizemos essa volta toda para falar de Melville, mas também para lembrar que o paraíso navegado por James Cook, Charles Darwin e pelo autor de “Benito Cereno” ainda está lá mais paradisíaco do que nunca. A Austrália, por exemplo, fez o lockdown direitinho (e continua a repeti-lo quando é necessário) e é um dos poucos lugares no planeta em que se pode andar sem máscara. Isso, obviamente, depois de passar pela rigorosa quarentena de 14 dias enfurnado em um quarto de hotel. Difícil acreditar que este lugar exista, mas, quem faz o trabalho de casa direitinho, tem suas regalias. Em suas praias e nas piscinas naturais de sua costa, alimentadas pelas águas do mar, é possível aproveitar aqueles mergulhos e liberdade de que todos sentimos tanta falta. Por isso, foi gratificante assistir a volta do circuito internacional de surfe na praia de Merewether, em Newcastle, que se encerrou sábado passado. Não por acaso, outras três pernas do circuito mundial serão disputadas em território australiano. Nesta quinta-feira, mais uma competição tem início. Desta vez em Narrabeen, no norte de Sydney. Por lá, Corona é apenas o nome da cerveja que patrocina o torneio e cujo slogan é: “Corona: isso é que é vida”.

Merewether e seu “ocean bath” com a praia ao fundo

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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Uma resposta para Isso é que é Vida

  1. Margarida Maria Pedrosa Sa Freire de Souza disse:

    Muito bom, junto um bocado de coisas. Fico pensando na situação desses navios. Tem que ter muita imaginação….

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