Retrospectiva Livresca de 2020

Vamos a alguns dos títulos com os quais me ocupei durante esse ano de confinamento. Acompanhando a chegada da pandemia, adentrei março imerso nas memórias de Patti Smith (“Just Kids”, Audible, 2011; narração da própria autora; “Só Garotos”, Cia das Letras, 2010) como se estivesse em outro planeta, sem nem de longe imaginar o que viria pela frente. Andava frivolamente pra cima e pra baixo ouvindo este livrinho da Patricia Lee Smith em meu ipod. Trata especialmente do período que marca a sua convivência com o pra lá de talentoso Robert Mapplethorpe. Smith é um pouco afetada ao registrar seu namoro e amizade com o Sebastião Salgado do underground nova-iorquino, mas o interesse pela trajetória dos dois faz com que sigamos com a narrativa até o final. 

Um outro título (“O Rio antes do Rio”, Relicário, 2020) que adquiri pouco antes do começo da quarentena. Se alguém ainda acha que o gentílico “carioca” surgiu por designar etimologicamente a “casa do homem branco” (a oca do caraíba), como queria Varnhagen e aqueles que o leram, precisa passar os olhos no livro de Rafael Freitas da Silva para saber que o nome surge por assinalar a oca dos índios kariós (carijós). Foi assim que ele aprendeu com o francês Jean de Léry. Léry veio conhecer a França Antártica em 1556 e conviveu com os tupinambás (grupo que dominava vastas regiões do território brasileiro, inclusive o Rio de Janeiro) registrando tudo para seu livro “Viagem à Terra do Brasil”. Essa é uma das boas passagens colhidas pelo redator de esportes da Globo e pesquisador nas horas vagas que dá destaque às histórias das populações nativas ao retratar o período de chegada e ocupação da América por portugueses e europeus.

“Todos os Contos” (Rocco, 2015) estava aqui na estante há um bom tempo. Fui conferir o que havia nele e que ainda desconhecida da escritora que adotou a vizinhança do Leme, onde morei com gosto em um quarto e sala na rua Anchieta por uns dois anos, como seu endereço de residência na volta ao Brasil depois do fim de uma casamento que a levou a uma peregrinação pelo mundo. Sua fruição se deu em gravações em audiolivro e na leitura da cuidadosa coletânea organizada pelo mais famoso biógrafo da autora, Benjamin Moser. Reunindo todos os 85 contos escritos por Clarice Lispector em vida, o volume vem com prefácio e comentários do organizador. Impressionou bastante os contos que a escritora escreveu por encomenda, algo que detestava, sob o título de “A Via Crucis do Corpo”. Particularmente, o desprendimento e as ousadias de Ruth Algrave, Aurélia Nascimento e da sapeca da sessentona Maria Angélica de Andrade. Uma Clarice bem diferente.

Comecei “A Hora da Estrela” (Rocco, 2008) desta vez em audiolivro e fui terminá-lo voltando ao livrinho que aparece em um exemplar novíssimo que adquiri para a seção dedicada à autora aqui em casa. “Água Viva” (Nova Fronteira, 1978), livro favorito de Cazuza, foi mais um a marcar esse reencontro com a autora preferida da minha pós adolescência. Cheguei a ele por uma gravação em audiolivro. Tenho aqui na estante uma edição velhinha dele de um ano antes de eu entrar na faculdade de comunicação da PUC/RJ. Era um período em que lia muito Clarice. Comecei com “A Paixão Segundo GH”, ainda no ensino médio (segundo grau à época), e segui com tudo o que aparecia. “A Maça no Escuro”, “Perto do Coração Selvagem”, “Onde Estivestes de Noite?” e por aí afora. Algumas dessas edições, assim como a de “Água Viva”, guardo até hoje. Anos depois uma acadêmica comentou um pouco maldosamente, mas acho que com certa propriedade, que Clarice é uma autora que desperta os instintos latentes da juventude.

Uma obra que estava terminando de ler quando da chegada da infausta criatura. Nunca tinha lido os “Tristes Trópicos” (Cia das Letras, 2019) de Lévi-Strauss e foi uma surpresa descobrir a maneira casual como ele chega ao Brasil para conviver com os nossos índios e depois abrir um caminho inédito dentro da história da antropologia como ciência.

Como um livro puxa o outro, “Tristes Trópicos” me levou a “O Rio antes do Rio”, que por sua vez me conduziu à “Brasil: uma Biografia” (Cia das Letras, 2015), que Lilia Mortiz publicou ao lado da historiadora Heloisa Starling. Taí um volume ótimo que deveria ser obrigatório nas escolas de ensino médio brasileiras. Um resumão caprichado de nossa triste história.

De Lilia Moritz li também o interessante “O Sol do Brasil – Nicolas-Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João” (Cia das Letras, 2008), que ajuda a ter uma compreensão precisa sobre a tão falada “Missão Francesa”, que nada mais era do que um grupo de artistas franceses que trabalhavam dentro da lógica emulatória napoleônica e que se acharam abandonados depois de sua queda.

Uns a tratam como a socialista de iPhone, mas quero ver ter a disposição da apresentadora do canal Tese Onze no YouTube Sabrina Fernandes para sentar a chunda na cadeira e cruzar de fio a pavio a pedreira que são os 4 tomos de “O Capital”, de Karl Marx. Durante seu doutorado no Canadá, esta foi uma de suas tarefas, além do letramento nas obras de Gramsci, Benjamin, Lukács, Marcuse e do queridinho Florestan Fernandes. Sua tese de doutorado é o seu livro de estreia, “Sintomas Mórbidos – a Encruzilhada da Esquerda Brasileira” (Autonomia Literária, 2019), cuja leitura já tinha iniciado e que tive de voltar por tratar do assunto que encerra o livro “Brasil: uma Biografia”, de Lilia Moritz e Heloisa Starling, as manifestações de rua de junho de 2013. Uma pena que faça muita falta à bibliografia de Sabrina as obra de Thomas Piketty, o pensador progressista mais importante da atualidade.

Com Eduardo Bueno, cruzei pela segunda vez o Oceâno Atlântico quinhentista no seu “A Viagem do Descobrimento” (Objetiva, 1998), fazendo todo o percurso. A leitura foi complementada pelas postagens do autor no canal Buenas Ideias no YouTube e pela “Carta de Pero Vaz de Caminha” (Martin Claret, 2002), registro comentado por Jaime Cortesão da carta fundadora do país. Peninha já concluiu a gravação de própria voz de um de seus mais conhecidos livros que estará disponível em audiolivro. Fiquei tão entusiasmado com essa segunda visita que ganhei de presente de aniversário a coleção completa do autor sobre o tema e mais o “Duas Viagens ao Brasil”, de Hans Staden.

Intercalando com alguns dos títulos anteriormente comentados, tenho lido há alguns meses o “Aparência do Rio de Janeiro” (José Olympio, 1952), livro assinado por Gastão Cruls que sobrou dos pertences de meu avô materno (é o que imagino pelo menos). A obra de Cruls não consta, para surpresa minha, da bibliografia de “O Rio antes do Rio”, de Rafael Freitas da Silva. Cruls especula várias possibilidades para o nome da tal “Casa de Pedra”, a Carioca, que deu origem ao gentílico dos moradores do Rio de Janeiro. Nenhuma das suas hipóteses, no entanto, é mencionada por Rafael Freitas para quem Carioca era, como vimos, a “Casa dos Carijós”. Por sua importância, Cruls merecia ter feito pelo menos parte das leituras do noviço pesquisador, inclusive para que suas afirmações fossem confrontadas com o que já se especulou sobre o passado de nossa cidade e seus habitantes.

Os frequentadores deste blogue talvez não saibam, mas venho há 10 anos frequentando um clube de leitura que se reúne todo mês para conversar sobre um título qualquer e degustar iguarias. Esse foi obviamente um ano off para o grupo. Mas tivemos pelo menos dois encontros virtuais para ouvirmos a amiga Sheila Kaplan falar sobre Sérgio Sant`Anna e para conversarmos sobre os poemas e a trajetória de vida de Arthur Rimbaud. Os três volumes com a obra completa do poeta de Charlestown, traduzida e editada por Ivo Barroso, foram passados em revista. Desde a poesia do gênio adolescente, até a prosa de “Uma Estação no Inferno” e “Iluminações”, com o crivo novidadeiro do inquieto rapaz, bem como toda a sua correpondência. Para contextualizar tudo, recorri também à biografia de Graham Robb (“Rimbaud”, Picador, 2000).

Ao longo do ano passeei ainda pelo livros de Pedro Doria. Desde aquele que tem como assunto a fundação do país (“Enquanto o Brasil Nascia”, Nova Fronteira, 2012) até o que trata do Tenentismo (“Tenentes – a Guerra Civil Brasileira” Record, 2016). Este último esclarece muito sobre as raízes das interferências militares na vida política brasileira. O início do livro parece meramente narrativo por um capricho estilístico de Doria, mas vale a pena aguardar pelas conclusões do final. Uma discussão muito oportuna para o momento que vivemos e que pode ser aprofundada com “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” (Cia das Letras, 2019), mais um de Lilia Moritz, a escritora com quem mais convivi.

Estou fechando o ano com “A Bailarina da Morte – a Gripe Espanhola no Brasil” (Cia das Letras, 2020), que acabei de encerrar, e com “Fascismo à Brasileira” (Planeta, 2020), que está na cabeceira. A Gripe Espanhola talvez tenha sido tão cruel quanto o covid-19, mas foi mais breve. Chegou em setembro de 1918 no navio Demerara. Ele vinha de Liverpool com parada em Lisboa e saiu contaminando as populações ao atracar no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro (faria escalas ainda em Montevideo e Buenos Aires, espalhando o vírus). Mas, no carnaval de 1919, a gripe já tinha deixado de matar e acumular cadáveres na ruas e ido embora como conta Ruy Castro em “Metrópole à Beira-Mar”. Por isso mesmo, o carnaval no início de 2019 seria muito festejado. Um detalhe importante sobre o período lembrado por Castro: Rodrigues Alves, que tomaria posse na época para seu segundo mandato como presidente, não morreu como consequência da epidemia como pensam muito historiadores, mas vítima de uma anemia perniciosa que o levou a uma parada cardíaca.

Com a Espanhola, houve também o negacionismo por parte de autoridades como com o corona vírus. O depreparo, coisa indesculpável hoje, era, no entanto, uma contigência de uma país que ainda não tinha um Ministério da Saúde, nem um Sistema Único de Saúde. Já sabemos que 2021 vai ainda se mostrar um ano difícil, não custa porém desejar algo de melhor para todos nós, o que a chegada das vacinas parece prenunciar. Um bom ano portanto para vocês, leitores e assinantes.

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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Uma resposta para Retrospectiva Livresca de 2020

  1. Ana Moreiras disse:

    Marcos, obrigada por compartilhar uma safra de tão boas leituras. Por alguns dos livros, vou buscar.

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