Lágrimas na Quarentena

“Acabou Chorare” no Som do Vinil de Charles Gavin

Enquanto a pandemia segue exibindo sua face trágica, sinistra, funesta, ceifando um número inacreditável de pessoas por aqui e pelo mundo, a semana passada tratou de levar três grandes nomes da cultura brasileira. Gregório Duvivier fez uma bela homenagem ao Moraes Moreira em sua crônica de quarta-feira na Folha de São Paulo. O autor da cartografia afetiva do Rio de Janeiro inaugurou mais um espaço em nosso imaginário: o da Panificadora Ilimitada Moraes Moreira, Pães e Sonhos, na Gávea.

Como o Gregório, imagino que muita gente também começou a tocar violão na ilusão de que um dia conseguiria imitar o compositor dos Novos Baianos em sua destreza com o instrumento. Vagamos nessa quimera sem nos darmos conta que Moraes Moreira e João Gilberto são dois dos mais insuperáveis gênios em harmonização de acompanhamento que o Brasil conheceu (Heitor Villa-Lobos, João Pernambuco e Garoto ficam para uma outra categoria de virtuoses ao violão).

Na rádio-vitrola Belair vermelha de minha irmã mais velha, o “É Ferro na Boneca”, disco de estreia do grupo de Moraes, se alternava com o Tom Zé do LP com “Jimmy, Renda-se” e “Guindaste a Rigor”, o “Sgt. Pepper´s”, a Tropicália do “Panis et Circensis” e os álbuns dos Mutantes. Por essa época já devia estar acontecendo o badalado encontro de João Gilberto com Moraes e os Novos Baianos, encontro que marcaria uma mudança radical na sonoridade do grupo e que daria na criação do clássico “Acabou Chorare”.

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Moraes Moreira e sua trupe conheceram João Gilberto por conta do poeta Luís Dias Galvão, parceiro constante e exclusivo do começo da carreira do compositor de Ituaçu. Galvão, que como João nasceu na cidade de Juazeiro, ao norte da Bahia quase na divisa com Pernambuco, foi amigo do excêntrico violonista da Bossa Nova durante toda a vida. No show de João Gilberto no Theatro Municipal, em 2008, era possível vê-lo na platéia aproveitando aquela que seria a derradeira apresentação pública do intérprete maior dos clássicos bossanovistas.

Galvão em “Sou Sertão”, programa da Universidade Federal do Vale do São Francisco

Essa conversa toda sobre os baianos me traz à memória a pessoa do Rogê (certamente, Roger no nome de batismo, mas era assim que era tratado). Estamos no ano de 1977, na turma do  2o. ano do Ensino Médio do Colégio Andrews da Praia de Botafogo. O colega de classe Rogê era filho de um cineasta baiano que tinha sido assistente de Glauber Rocha e que produzia na Bahia, não sei se como ocupação de verdade ou por diletantismo, filmes de ficção-científica de baixo orçamento com cenografia improvisada (gravavam nas dunas recorrendo a tudo quanto era quinquilharia para o cenário). Nunca consegui descobrir de quem se tratava.

O Rogê lembrava fisicamente o Caetano Veloso (vejam a capa do segundo disco do compositor, de 1968, depois do LP de estreia com Gal Costa). Tinha o cabelo encaracolado e o usava ao natural, sempre despenteado. Era calado, introspectivo, quase introvertido, e tinha a fala mansa. Sentava na primeira fileira de carteiras e era o melhor aluno da turma em todas as disciplinas, arrancando elogios de todos os professores. Eu sentava na última fileira, tinha as piores notas, mas a amizade com o Rogê fazia com que ele me convidasse para ir à sua casa na Paula Freitas estudar na parte da tarde. Lá, eu conheci sua irmã, que tinha nome de música de Dorival Caymmi (Marina), e sua avó que nos servia bolo no intervalo dos estudos.

Nossas aulas de sábado no Andrews iam até o meio-dia. Às 15h eu já estava na Concha Acústica da UFRJ para assistir aos shows de Moraes Moreira. No anfiteatro da Universidade com o charme dos lugares a céu aberto, Moraes passava as composições que preparava para seu terceiro disco solo, “Alto Falante”, músicas que assinava com seus novos parceiros-letristas, os poetas Abel Silva, Fausto Nilo e Chacal. Tinha o acompanhamento do violão de Pepeu Gomes e do bandolim de Armandinho, que improvisavam solos acrescentando beleza às músicas. Levava meu gravador portátil à pilha e registrava todos esses shows em fita cassete. Encontrava frequentemente a Marina por lá, mas o Rogê nunca deu as caras.

Além de Moraes Moreira, a semana passada levou o escritor Rubem Fonseca. Gosto bastante da prosa do autor juiz-forano, mas não chego a ser um dos devotos que rezam diariamente na Igreja de São Rubem Fonseca, como os dedicados fãs Arthur Dapieve, Toni Belloto e Sérgio Rodrigues. Implico com o fato de os protagonistas do autor estarem sempre no seu canto, esquecidos de tudo, quando uma personagem gostosona bate, toda oferecida, à porta deles querendo conhecê-los.

Confesso que não li em profundidade a obra do escritor, mas concordo com a avaliação do artigo de quinta-feira passada do Sérgio Rodrigues que chamou a atenção para o fato de que os escritos de Zé Rubem não são apenas obras de um autor de “romances policiais”. Têm, por suas inovações narrativas, importância bem maior que esta. De qualquer jeito, como o “romance policial” não é o meu filão predileto, não posso falar muito. Não tenho nem leitura das obras de Luiz Alfredo Garcia-Roza, por exemplo. Os artigos de Raphael Montes em O Globo e de Ubiratan Brasil no Estadão, sobre a pessoa do ficcionista temporão e sua trajetória, funcionaram como um convite irresistível. Preciso começar por “O Silêncio da Chuva” e ver até aonde vou pelas ruas de Copacabana em companhia do detetive Espinosa.

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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