Humores Lusitanos

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Dizem que os portugueses andam fulos da vida com as hordas de brasileiros que têm aportado em terras lusitanas. Quando ouço o comentário, me vem à memória a pessoa do seu Valverde. Enquanto morei no apartamento de meus pais na rua Barão de Ipanema, 124, em Copacabana, ele vivia com sua família em uma unidade no último andar, na tradicional residência do porteiro chefe, dois lances de escada abaixo ficava nossa casa. Durante o dia, colocava ordem no prédio se apresentando sempre como a pessoa responsável por tudo o que ocorria em suas dependências, especialmente no espaço da entrada social e da garagem que naquela época não possuíam ainda grades prisionais e viviam com suas respectivas portas escancaradas para quem quissesse entrar. O visitante precisava apenas se identificar com o seu Valverde, que se apresentava sempre como o “pruteiro da prutaria”.

Como o sobrenome sugere, tinha origem portuguesa e apesar dos muitos anos por aqui, mantinha o sotaque intocado. O mesmo acontecia com os donos da Panificadora e Confeitaria Flor de Copacabana, quase na esquina com a rua Constante Ramos, que fornecia o pão francês e o leite tipo B ensacado em plástico da CCPL do café da manhã, todos os dias. Aliás, ainda são os mesmo portugueses a administrá-la. Também mantinham, assim como seu Valverde, a pronúncia característica. Imagino que sigam como donos da padaria pois um deles ainda vejo aqui perto de casa na ciclovia da Toneleiros pedalando sua bicicleta por volta da hora do almoço. Para ficarmos nas imediações da Barão de Ipanema, poderia citar os proprietários do restaurante, infelizmente desativado, Ponto de Encontro, com seu filé ao molho madeira, seus pastéis de nata e outros pratos e sobremesas deliciosos com os quais aplacava a fome.

Menciono todos esses fatos para lembrar que não me recordo de nenhuma animosidade ou desconfiança em função da nacionalidade de seu Valverde e dos distintos donos da Flor de Copacabana e do Ponto de Encontro. Por isso, me causa certa surpresa saber destas notícias de além-mar. De minha parte, sinto que teria grande dificuldade de viver em terras lusas. Acho uma sociedade muito conservadora e mesmo afetivamente incompreensível para mim. É uma outra cultura, um outro jeito de viver. E olha que falo isso em pleno governo vocês sabem de quem.

Se fosse passar uma temporada em Portugal, seria para ajudá-los a ter um melhor entendimento do idioma que compartilhamos. Iria com fito de explicar por exemplo que a palavra “sinal” começa com esse e não com cêagá e para alertá-los sobre o uso ainda corrente das vogais, muito apreciado pelos cariocas particularmente. Gregório Duvivier chamou a atenção de Ricardo Araújo Pereira para este último aspecto e ele se desculpou em nome de seus conterrâneos afirmando que dizer muitas vogais cansa os maxilares.

Uma mesma língua, muitas diferenças, caprichos, veleidades, cismas

Vou contar um caso para exemplificar as dificuldades culturais advindas da convivência com a cultura lusa. Digamos que uma senhora de nossa sociedade, cujo nome deve ser preservado, recebeu em uma ocasião em sua residência, em visita ao Rio de Janeiro, um gajo lisboeta. Tratava-se de um colega de estudos e pesquisas que, não consigo conter a indiscrição, se tornaria seu namorado. Certa manhã ao se dirigir à área de serviço do apartamento, a carioca que andava fascinada com o gajo luso deu de cara com o ilustre visitante trepado em cima de um banquinho, lutando para alcançar o varal e colocar sua toalha molhada para secar.

Aqueles com os quais dividimos o idioma têm de fato, como podemos concluir do episódio narrado, uma percepção bem distinta da nossa sobre o mundo e sua lógica. A teoria do Gregório Duvivier é que eles fazem isso cinicamente para ver como reagimos e rir de nós sem demonstrar. Não acho que seja sempre o caso, mas vá lá, não deixa de ser uma hipótese interessante.

Riso e religião para os portugueses 

Embarcamos nessa conversa toda porque minha mãe acaba de se tornar mais uma brasileira com cidadania portuguesa. Foi uma iniciativa de alguns de meus irmãos, porque ela já disse que não sai de Copacabana em hipótese alguma. De qualquer forma, está de posse do seu assento de nacionalidade, documento que conseguiram para ela a partir da ascendência via meu bisavô, Bernardino Teixeira de Freitas, nascido em julho de 1861 em Braga, uma cidade pequena, de aspecto medieval e muito simpática. Estive por lá em 2014 apresentando um trabalho sobre a trinca formada por Mario Filho, Jaguaré Bezerra de Vasconcelos e Fausto dos Santos, que teve como pano de fundo a primeira excursão do Clube de Regatas Vasco da Gama à terrinha. A partir da história da cidadania de minha mãe ficou aquela vontade de também me juntar a meus irmãos para conseguir a segunda nacionalidade que nos liga aos antepassados de minha avó Bertha Teixeira de Freitas, falecida quando eu ainda era criança e de quem guardo umas poucas lembranças. Vejamos no que vai dar.

O maranhense Wandson Lisboa adaptado à vida e à cultura portuguesas 

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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