Susan Lee Jacobson Rosenblatt no Divã do Dr. Moser

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Link para a resenha da “QuatroCincoUm”  (aberta para leitura)

Na tarde de quinta-feira dia 5 de setembro de 2002, a fila nos jardins que ficam aos fundos da Biblioteca Nacional era grande. Serpenteava os bancos de concreto à sombra das árvores e saía pela rua México afora indo parar não se sabe aonde. Aguardando para presenciar uma rodada do colóquio “Caminhos do Pensamento: Horizontes da Memória” com Susan Sontag, na sua primeira e imagino que única visita ao Brasil (palestra que a ensaísta faria ao lado do historiador Carlo Ginzburg), estavam um casal de fato, Cristiane Costa e Paulo Roberto Pires, um casal improvável, Gisele Sanglard e Claudio Cordovil, e uma alma solitária, este que vos digita. Desde as 10h da manhã, aguardava a entrada no auditório Machado de Assis lendo “A Metáfora Viva”, de Paul Ricoeur, que é uma pena não ter chegado às mãos de Benjamin Moser antes de ele escrever o seu “Sontag: Her Life and Work” (Ecco/HarperCollins; Ecco/HarperAudio, 2019).

Cristiane e Claudio, eu conhecia bem da turma de pós-graduação da ECO/UFRJ de uma cadeira ministrada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda (que reunia mestrandos e doutorandos) e foi do Cordovil que veio o comentário ácido: “Nos Estados Unidos, Sontag não junta mais do que uns poucos gatos pingados para ouvi-la. Aqui é essa multidão”. A bem da verdade, Gisele, que imaginei fosse conhecida de todos para depois saber que ela havia entrado na conversa casualmente, estava lá para acompanhar o que o historiador Ginzburg tinha a dizer. Os outros, com pose depreciativa ou não, viviam o frisson de ver e ouvir Sontag de perto.

Lilia Moritz Schwarcz seria a mediadora da mesa e abriu os trabalhos com a classe costumeira. Lembrou que Sontag dispensava apresentações, mas que ela não iria perder em hipótese alguma a oportunidade de falar sobre a ensaísta convidada e passou a uma bela introdução. Sontag veio conversar sobre um livro que estava finalizando, “Diante da Dor dos Outros”, seu último trabalho em vida e que encerraria em grande estilo e num retorno ao ensaio, depois da ficção do romance “Na América”, sua trajetória de escritora (ela morreria dois anos depois, em dezembro de 2004). Tinha uma brochura de papéis à sua frente com marcações de post-it coloridos e passeou pelas muitas páginas impressas enquanto distribuía os costumeiros, incisivos e certeiros insights de sua verve ensaística. O livro era uma espécie de continuação atualizada para os tempos de imagens digitais e da nascente Internet do seu conhecido e ótimo “Sobre Fotografia”.

“Sobre Fotografia” foi o livro com que me aproximei pela primeira vez da obra da autora no começo dos anos de 1990. Além de escrever para O Globo, tinha um segundo emprego em uma produtora de vídeo em Laranjeiras e andava com o livro debaixo do braço. Durante esse período, Belisário Franca e Hermano Vianna estavam festejando o sucesso de “African Pop” e preparando um novo documentário sobre música baiana e caribenha. Em um dos intervalos da edição do documentário em uma roda de conversa que também incluía o editor de imagens e futuro artista plástico Sérgio Mekler, Belisário se desmanchou em elogios pelo livro de Sontag, que havia sido lançado em 1977 e que reunia os ensaios que a autora publicara na The New York Review of Books em 1973.

“Sobre Fotografia” saiu por aqui em 1983, Belisário já tinha lido, mas eu só vim a conhecê-lo nesta época. Virei freguês desde então e passei a tê-la como uma de minhas autoras-ensaístas prediletas. Tão logo Benjamin Moser anunciou o começo da pesquisa para a preparação da biografia, fiquei na expectativa pela história de vida de Sontag da qual já sabia alguma coisa por conta de seus diários, que, no entanto, não davam muita graça de ler em função de sua organização fragmentária (agora passaram a fazer todo o sentido do mundo).

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Foi uma sorte que parte dos responsáveis pelo legado de Sontag tenham escolhido Moser para cuidar de mais uma biografia da escritora. Já existem outras lançadas anteriormente, uma delas de Sigrid Nunez (“Sempre Susan: a Memoir of Susan Sontag”, Riverhead Books, 2014). A jovem Sigrid Nunez, hoje romancista, foi, na segunda metade dos anos 1970, secretária na convalescença do primeiro dos três cânceres pelo quais Susan passou. Conviveu tanto com a autora que acabou namorando David Rieff, único filho de Susan, com quem dividiu o mesmo teto. Viviam os dois e a sogra, que se empenhou muito para a aproximação do casal.

Atual editor responsável pela obra de sua mãe, foi David Rieff e sua tia e única irmã de Susan, Judith, que não andam se entendendo muito bem com a ex-esposa de Sontag, a fotógrafa Ana Leibovitz (com quem Susan viveu entre tapas e beijos de 1989 até a sua morte em 2004), que optaram felizmente pelo biógrafo de Clarice Lispector. Para o trabalho, franquearam todo o material pessoal da autora que foi adquirido ainda em vida pela Universidade da Califórnia em Berkeley (a primeira universidade pela qual Susan passou) por 1 milhão e cem mil dólares.

Aquisição que incluiu toda uma coleção de manuscritos com a qual nenhum dos biógrafos anteriores puderam contar. Papéis particulares e documentos reservados da autora: caixas com fotos, diários, faturas de hotel, cartas de amor, rascunhos de manuscritos (alguns inéditos), programas de ópera, tudo identificado como parte dos “Sontag Papers”. Até mesmo os computadores pessoais da escritora (um PowerBook 5300, um PowerMacG4 e um iBook) com um indiscreto acesso as suas trocas de e-mails (Sontag, que cuidou da transação de venda de seu legado, sabia que isso aconteceria quando fechou o acordo), estão entre as fontes das quais Moser pôde se valer para sua biografia.

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As resenhas já publicadas sobre o trabalho de Moser destacaram alguns pontos que merecem ser retomados. Como bem salientou o artigo da QuatroCincoUm, Moser realizou mais do que uma biografia intelectual, uma biografia de tom ensaístico, em um espelhamento ao que de melhor Susan fez em vida (só Sontag ao que parece discorda um pouco disso). Em artigo na Piauí, Alejandro Chacoff lembrou ainda as características do ensaísmos de Sontag, que oscilaria entre a erudição na citação de fontes (agora sabemos, construída à base do consumo de muita anfetamina numa repetição de prática cultivada por Jean-Paul Sartre) para comunicar ideias de fácil compreensão (Sontag chegou a se mostrar frustrada com o cineasta Don Levine que elogiou o “Sobre Fotografia” para ouvir da ensaísta nova-iorquina: “Mas não é tão bom quanto Benjamin, não é verdade?”).

O tom ensaístico que marca o lado novidadeiro do trabalho biográfico de Moser tem sido ao mesmo tempo motivo de algumas restrições. Lara Feigel, do The Guardian, disse que o biógrafo diagnostica os transtornos de Sontag com a linguagem de uma manual de psicologia. Parul Sehgal, do The New York Times, chegou a adquirir o “Adult Children of Alcoholics”, da psicóloga americana Janet Woititz (citada no livro), para concluir que a opção de Moser por querer explicar a personalidade de Sontag a partir do vício de sua mãe, Mildred, em bebida, não é defendida pela pesquisadora em sua obra.

Paulo Roberto Pires criticou por sua vez as avaliações sobre os posicionamentos políticos de Susan com relação a fatos históricos como a Guerra do Vietnã e a queda do Muro de Berlim. Segundo o resenhista, Moser retrata os posicionamentos de Sontag nestes momentos “com grandiloquência e simplificação que não fazem jus a seu estilo”. Eu poderia falar sobre a “Sontag como metáfora” de Moser (como destacou o excelente título da Ilustrada), mas não vale a pena ficar apontado mais problemas em um relato delicioso de ler. Um trabalho, que, como nos diz o escritor de “As Horas”, Michael Cunningham, na contra-capa do livro, tornou “difícil imaginar a vida de Sontag sem a narrativa que Benjamin Moser construiu em torno dela”.

77222442_570668920365623_6337346505787047936_nEstão lá os detalhes que ajudam a entender seu fragmentário diário, editado por seu filho em dois tomos até o momento. Há os pormenores muito bem esclarecidos sobre os encontros e a convivência com Thomas Mann, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Andy Warhol, Roger Straus (o mais dedicado editor da autora) e Robert Kennedy. Ficamos sabendo ainda com precisão sobre a dificuldade da escritora em assumir sua homossexualidade e sobre os relacionamentos conturbados com a amiga Harriet Sohmers, a futura dramaturga María Irene Fornés, a atriz Carlotta del Pezzo e a fotógrafa Annie Leibovitz.

Moser também nos convenceu, e esse é um mérito exclusivo desta biografia, que “Freud: The Mind of a Moralist”, obra assinada solitariamente pelo primeiro e único marido de Susan, o sociólogo Philip Rieff, é em grande parte de autoria de Sontag e merece ter lugar entre seus escritos. Eles se conheceram na Universidade de Chicago quando ela contava apenas 17 anos. Ele a convidou para ajudá-lo em uma pesquisa sobre Freud e os dois pesquisaram, namoraram, casaram e tiveram o filho David. Mas foi Susan quem respondeu pelo trabalho intenso de “The Mind of a Moralist”. Esse fato marcou muito a produção subsequente da autora, como bem pontua ao longo do livro o autor de “Clarice,”  confrontando este livro e o restante da obra de Sontag.

Para encerrar, vale a pena citar a maneira como Benjamin Moser fecha sua dedicada biografia, mostrando a necessária reverência por Susan Sontag sem deixar de ser sincero com sua personagem e com sua trajetória de vida. Diz o biógrafo: “Aristóteles escreveu que a “metáfora consiste em nomear algo com uma designação que pertenceria a outra coisa”; e Sontag mostrou como a metáfora forma, e depois deforma o ser; como a linguagem pode consolar, e como pode destruir; como uma representação pode confortar e ao mesmo tempo se mostrar obscena; a razão pela qual até o bom intérprete deve ser contra a interpretação. Fez seu alerta contra as mistificação desencadeadas por fotos e retratos: incluindo aquelas assinadas por biógrafos.”

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Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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