Fawcett em Foto de Lucas Henrique
Com alguns parceiros próximos em gosto e sensibilidade performática, fui assistir semana passada ao novo trabalho de Fausto Cardoso, “Cachorrada Doentia”, que passou em duas apresentações relâmpago pela Sala Baden Powell. Um dos integrantes da entourage, perturbado pelos efeitos da tirania da curvatura espaço-tempo, pediu ao taxista que o levasse ao Ricamar e conseguiu mesmo assim, para espanto geral, chegar ao seu destino. Fã de música progressiva ainda que com forte queda por metais pesados, queria ouvir seu hino favorito, “Facada Leite Moça”, que, para sua decepção, não estava no roteiro do espetáculo.
Mas o devoto de um prog-raiz teve certa compensação com a música “The Knife”, do Genesis da fase com Peter Gabriel, que surgiria em versos traduzidos e recitados na companhia de uma animação com a capa do disco “Trespass” em imagens projetadas por Jodele Larcher (responde pela parte visual da performance). Foi uma das muitas e ecléticas referências musicais que pontuaram a apresentação ao lado de “Born to Be Alive”, de Patrick Hernandez, “Staying Alive”, dos Bee Gees, e “Where Have All the Good Times Gone”, dos Kinks.
Regininha Poltergeist acompanhada por um fã progressivo
Para minha própria surpresa, foi apenas o meu segundo contato ao vivo com a poesia de Fausto, o primeiro aconteceu em uma sala do Edifício Cardeal Leme na PUC, lá pelos idos de 1980. Não havia Kátia Flávia, não havia os Robôs Efêmeros, não havia a Falange Moulin Rouge, não havia as muitas louras que dali a pouco povoariam o palco de seus shows, embora já circulasse por lá a Fernanda Abreu. Ela fazia o curso de sociologia enquanto Fawcett se entregava à sua formação em comunicação social, muito bem orientado por Rosangela Araújo com quem tinha extrema afinidade, cativado, como outros alunos, pelas inspiradas aulas da professora de estética da comunicação. Naquela manhã na PUC, tínhamos Fausto nos vocais, o filósofo José Thomaz Brum nos teclados e dançarinas, entre elas a Claudinha Damasio. A verborragia já era a mesma e prenunciava a classe em criar lisérgicos flashes poéticos que marcaria seus escritos futuros.
Foto de Lucas Henrique
Dos pilotis da PUC, fui esbarrar com ele nas redações da vida. Certa vez naquela que segundo seu mais insolente editor, Rogério Durst, foi a pior revista de rock do Brasil. Fausto Cardoso tinha admiração por Robert Fripp e preparou um texto sobre o King Crimson, se não me falha a memória bem ao seu estilo, caótico, anárquico, fragmentário, e levou ao escritório da revista “Roll”, na rua Marechal Floriano, quer dizer, Marielle Franco, para ser publicado. Depois seguiríamos cruzando caminhos, ele divulgando seus shows e eu tentando fazer uns trocados para pagar as contas.
Fausto, Carlos Laufer, Fabio Caldeira e Gabriela Camilo em Foto de Lucas Henrique
Desde então e até o “Cachorrada Doentia”, acompanhei Dkrt. Faustus portanto à distância através de suas mensagens enviadas pelo rádio, pelo toca disco, pelo CDplayer, pela tv, pelos livros e, mais recentemente, pelas suas manifestações naqueles que ele denomina como coliseus digitais, em que festejamos ou mandamos à degola, com nossos polegares pra cima e pra baixo, os partidários daquilo que aprovamos/repudiamos.
Para efeito dos registros da ciência da literatura, é o próprio autor no programa do espetáculo que qualifica a sua prosa eloquente e difusa como “ficção-científica psicodélica”, informada por um aqui e agora que é atacado de maneira implacável e sem misericórdia (compaixão ali, só pelo diabo). Não por acaso é o poeta que nos alerta durante uma passagem do show: “O Brasil é um abismo que nunca chega. Um lugar cheio de vertigens sociais e mentais crônicas”. É o que constata ao lado de seus personagens, como o Pedagogo Fantasma, que aparece como um dos muitos gnósticos movidos pelo pentagrama da desova esotérica a participar da já em curso quarta guerra mundial, depois de duas guerras quentes e uma fria, como nos informa o performer.
Gabriela Camilo em Foto de Lucas Henrique
Além do Pedagogo, há os Monges do Funk Interior, que atuam em vagãos de trem do subúrbio, assim como a Garota Fugitiva, ambos reclusos em seus mundos com fones de ouvido, representantes que são da geração y. Junto com eles estão também aqueles que Fausto identificou planeta afora como praticantes de um baile comandado por veteranas do pole dance (do Crazy Horse, do Moulin Rouge, das discotecas) em busca de um prêmio qualquer (green card, cirurgia, emprego). E ainda, o Videogamer Xamã, a líder banguense de uma Jihad da Zona Oeste, Patricinhas Vorazes e as Damas do BigData, estas últimas dedicadas ao viciante e danoso consumo do “crack Vuitton”.
Fabio Caldeira em Foto de Lucas Henrique
Fausto esteve acompanhado em cena por dois novos parceiros, o casal de músicos Gabriela Camilo e Fabio Caldeira, que assinaram junto com Carlos Laufer as composições. Sempre tive como termo de comparação para o tom recitativo de suas intervenções no palco a pessoa de Mark E. Smith. A qualidade das narrativas de Fausto supera de longe as de Mark Smith, embora o ex-líder do The Fall se saia melhor como cantor. Com Fernanda Abreu, vimos como a alternância de vocais torna mais vigorosa a plataforma de lançamento para a deflagração da prosa de Fausto Fawcett e a intercalação com outras vozes talvez tornasse tudo ainda mais arrebatador. É uma sugestão.
Os temas das performances de Fausto Fawcett têm sido sempre retrabalhados por sua escrita e apresentados de forma mais elaborada em edição para o mercado livreiro. Isso aconteceu com “Santa Clara Poltergeist” (Editora Eco, 1990), “Básico Instinto” (Relume Dumará, 1992) e “Favelost” (Martins Fontes, 2012), a mais bem acabada de suas apostas no campo literário. Parece que o mesmo se repetirá agora. Aguardemos.
Mapa do amigo João Bastos de Mattos, pra ninguém se perder em Favelost
Ps. Fotos do show “Cachorrada Doentia” gentilmente cedidas por Lucas Henrique para esta postagem.