Milcíades, Cid Sá Freire, Cidão

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Era uma pessoa gregária. Tão gregária que a decisão de ter 5 filhos nunca lhe pareceu um tanto quanto extravagante. O grande número de pessoas que sempre quis se cercar se estendia aos muitos amigos, namorados e namoradas de suas filhas e filhos, que se reuniam e mesmo dormiam, sem cerimônia alguma, em seu apartamento que, ainda que tivesse uma boa metragem, possuía apenas 3 quartos. Muito certamente isto se dava por serem bem-recebidos e sem quaisquer restrições ou formalidades. Além do almoço, em que os sobrinhos compareciam com frequência, o religioso lanche do final da tarde poderia reunir umas 20 pessoas que se revezavam na mesa da copa como se tudo fosse corriqueiro.

O mesmo se repetia com seus amigos particulares. Sempre teve muitos colegas de trabalho que convidava para irem à já superlotada casa de sua família em Petrópolis (onde nós passávamos o verão com nossos tios, primos e uma infinidade de agregados) e à sua fazenda em Silva Jardim, esta de sua propriedade com seu pai e outros dois de seus irmãos. Com seus companheiros de quarto, que conheceu durante o curso de engenharia agronômica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no começo da década de 1950, manteve contato em encontros que faziam com que se vissem pelo menos uma vez ao ano.

Cidão e as crias

Assim que se formou, foi trabalhar na Escola Agrícola Caetano Costa em Lajes, Santa Catarina. Quando embarcou em direção ao sul, já havia se casado em 1956, e logo teria sua primeira filha, Márcia, nascida um ano depois no Rio.  Enfrentou com minha mãe um frio dos diabos em Lajes, temperaturas próximas de zero grau e até mesmo neve. Tinham de passar a roupa de cama a ferro antes de dormir. Por lá nasceriam mais dois de seus filhos, minha irmã Margarida e eu. De Lajes, seguiria para Belo Horizonte, onde nasceu Isabela, sua terceira e última filha, e, de volta ao Rio de Janeiro, ainda conseguiria tempo para outro filho homem, André.

Da experiência na escola agrícola passou à gerência do Banco da Lavoura em Minas Gerais e depois trabalharia ainda no Bemge, em sua sede no Rio, antes de entrar para a Vale do Rio Doce. Como último passo de sua carreira, passaria a atuar em cargos administrativos do governo federal em Brasília. Paralelo a isso, veio a sua fase do que chamamos hoje de empreendedorismo.  É um momento que eu conheço pouco, pois ele nunca conversou em detalhe sobre o assunto em casa, mas que acho fascinante.

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Uma de suas apostas foi como acionista no lançamento do primeiro iogurte brasileiro, o YOG. Não me pergunte como e onde nasceu a iniciativa, porque não faço a menor ideia. É verdade que a vida inteira meu pai criou gado leiteiro e o leite tirado na fazenda em Silva Jardim era recolhido todo o dia bem cedo por um caminhão que o levava até a unidade de pasteurização da CCPL em Alcântara. A empresa que lançou o YOG, no entanto, não tinha nenhuma relação com isso. Talvez só o interesse por um produto com o qual sempre esteve envolvido.

O iogurte era feito com poupa de fruta trazida do exterior, processada e acondicionada em uma muito simpática embalagem, ecologicamente correta, fabricada com celulose. A marca YOG para fins propagandísticos era grafada com as cores do arco-íris e os vários sabores embalados com a coloração correspondente a cada fruta. Foi engraçado quando ele chegou certa vez na fazenda em uma de suas duas Brasílias (tinha uma branca e outra verde) com engradados empilhados com iogurtes de morango, ameixa, pêssego, natural.

Para divulgar o produto, foram confeccionados macacões que todos nós usaríamos. Havia a febre por causa dos macacões jeans das marcas Lee e Levi´s, mas os da YOG eram brancos com o símbolo do produto estampado no bolso da frente. Tínhamos ainda caixas de isopor para acondicionar unidades, também com o logo do produto, assim como outros itens de divulgação.

A classe média recorria naquele tempo a figura do decorador. O lá de casa era o seu Ivo, pessoa que dizia à minha mãe que móveis comprar e como decorar o apartamento nos mínimos detalhes. Lembro que quando uma campanha de TV foi aventada, o seu Ivo sugeriu que exibissem o logo do YOG (não sei se apenas isso ou se com o manjado “vem aí, aguarde”) durante o intervalo da programação, para despertar o interesse dos telespectadores.

A segunda iniciativa veio com a empresa Eletro, que ficava em Botafogo, e que importava artigos eletrônicos a partir de Manaus para serem montados aqui no Rio. Era deles um toca-fitas de carro que funcionava que era uma beleza e que equipou vários dos automóveis que passaram por nossa garagem: além das Brasílias, um Maverick de capota preta, Opalas (azul e vermelhão de capota preta) e um Dodge Dart.

Era também uma pessoa generosa. Desapegado, como diríamos hoje. Dinheiro existe é pra se gastar, era o seu lema. Em Petrópolis, quando o sorveteiro subia a rua Professor Ströller no Quarteirão Brasileiro soprando sua corneta, já vinha sabendo da parada obrigatória no portão de número 272. Descansava a caixa térmica carregada de sorvetes e aguardava. Todos que estivessem em casa eram então convocados para escolherem o sorvete que desejassem. No final ele vinha com a carteira e pagava a conta.

Quando entrou para a Vale do Rio Doce, achou que tinha a obrigação de empregar todos os seus conhecidos na empresa. Não sossegou enquanto não fez isso com muitos de seus amigos (especialmente, por mera coincidência, com os maridos de suas sobrinhas). Alguns trabalharam lá a vida inteira e se aposentaram na Vale, no Brasil e até mesmo no exterior.

Adorava viajar, e o cargo de diretor da Vale do Rio Doce o levou ao mundo inteiro. Não havia país que não conhecesse. Os presentes chegavam de tudo quanto é lugar. Um despertador Casio japonês, que me acordava para ir para o Colégio Andrews da Praia de Botafogo toda manhã, uma camiseta vermelha com o nome da cidade de Honolulu grafada em branco, que adorava, e um tênis Adidas alemão, preto com listras vermelhas, entre outras lembranças.

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A partir de 1979, foi convidado para ser assessor de figuras importantes de Brasília pois já tinha tido uma passagem no Rio pelo Ministério da Fazenda. Em seu apartamento funcional na SQS 309 continuou a receber amigos, irmãos, sobrinhos, com a mesma boa vontade e alegria de sempre. Adquiriu também um sítio entre Sobradinho e Taguatinga onde fabricava artesanalmente queijo frescal para ser vendido em Brasília. Ficou por lá e depois em Valparaíso de Goiás até próximo do fim da vida. Como era muito desorganizado e pouco precavido em relação a tudo, acabou destituído de todos os seus bens e sem conseguir uma aposentadoria mínima para seu sustento. Separado de minha mãe alguns anos depois de se mudar para Brasília, teve, em razão de sua situação precária, de voltar a morar conosco no Rio. Um ataque cardíaco o levou em 2006. Hoje faria 85 anos.

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Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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9 respostas para Milcíades, Cid Sá Freire, Cidão

  1. Isabela Sá Freire disse:

    Amei, posso publicar? Muito lindo.

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  2. Ana Pedrosa disse:

    Lindo filho ele merece sua homenagem Bjs

    Enviado do meu iPhone

    >

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  3. Margarida disse:

    Papai era uma pessoa além de generosa também nos possibilitou sair da Tijuca e conhecer o mundo que ele fazia questão de trazer de viagens, revistas e possibilidades aos filhos.

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  4. Ana Miccieli disse:

    Quantas saudades!!!
    Linda homenagem Kiko, tive a sorte é o privilégio de conviver com ele quando morava em Brasília…e quantas saudades…quantas coisas boas ele me ensinou!
    Parabéns pela bela homenagem!!

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  5. Francisco Eduardo Pires de Souza disse:

    Belo texto, Kiko. Saudades de tio Cid. Não sei se esclarece algo sobre a história do Yog, mas posso te dar um testemunho pessoal, porque naquela época eu trabalhei como estagiário na consultoria do Mário Sérgio e do Reinaldo, amigos e parceiros de tio Cid. O Reinaldo e seu pai eram empolgadíssimos com inovações (tecnológicas e outras) e conversavam sempre animadamente sobre o assunto lá na consultoria. A economia brasileira, naquele início dos anos 70, prosperava em ritmo febril, e muitos produtos novos eram lançados no nosso mercado. Eles voltaram de alguma viagem à Europa impressionados com a febre de consumo de yogurte que tinha tomado conta do velho continente. Concluíram que, como outros novos produtos, o yogurte também faria sucesso no mercado consumidor brasileiro, então em forte expansão. Os dois faziam parte de uma onda precursora daquilo que se chama hoje de empreendedorismo, como você observou. Se fosse hoje, provavelmente estariam no comando de alguma start-up, lançando algum serviço tecnológico na internet.

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    • Dudu, fico muito agradecido pelo testemunho. Ótimo saber todos esses detalhes. Lá em casa, meu pai nunca teve interesse ou vontade de comentar nada sobre seus negócios. Acho que ele os entendia como assuntos a serem tratados apenas com os amigos. Grande abraço e lembranças a todos

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  6. Marcio disse:

    Grande Cidão, tive a alegria de curtir sua generosa companhia em vários momentos no apê do Rio e em Silva Jardim. Muito bom astral e receptivo aos amigos dos filhos. Belo texto, bela lembrança.

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  7. cariocasp disse:

    Sr. Marcos, bonito texto sobre o Cidão.
    Por acaso ele tem parentesco com Milciades Mario Sá Freire, que já foi Prefeito do Rio de Janeiro-RJ?
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Milc%C3%ADades_M%C3%A1rio_de_S%C3%A1_Freire

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