Jornalismo, Literatura e o “Maracanazo”

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É antigo o namoro do jornalismo com a literatura. O último surto mais forte, consistente e inovador deste fenômeno talvez tenha sido o que ficou conhecido como o “Novo Jornalismo” norte-americano. Em vez de frequentarem as redações dos jornais como se estas fossem, nas palavras de Tom Wolfe, “um motel de 24 horas” pelo qual passavam enquanto aguardavam o tempo necessário para que escrevessem seu grande romance, os jornalistas começaram a querer tentar fazer literatura no meio impresso. O próprio Wolfe, e ainda Truman Capote, Hunter Thompson, Gay Talese e outros muitos, trataram de agregar voltagem literária aos seus escritos jornalísticos.

Dentro do jornalismo brasileiro, a crônica foi sempre o espaço literário por excelência. Nossos maiores escritores moldaram com a tão falada cor local aquele que acabou ficando conhecido como o gênero típico das letras brasileiras. De Machado de Assis a Drummond, passando por um plantel de autores que deram brilho e desenvolveram seus estilos amparados nesta vertente. Gente como Rubem Braga, Nelson Rodrigues (com uma obra sem paralelo em sua extensão neste gênero), Fernando Sabino e Vinícius de Morais (sob risco de ser atacado pelos amantes de sua poesia, confesso que tenho a crônica de Vinícius como o melhor de sua obra), entre muitos. Há ainda os cronistas pouco lembrados como o Apicius, que no meu entender escrevia crônicas ao resenhar suas visitas gastronômicas aos restaurantes da cidade (ou ao falar sobre os pastéis preparados por sua cozinheira), e o estrangeiro em meio a brasileiros que foi David-Drew Zingg, que vazava as colunas de Tio Zingg em inglês para que fossem traduzidas e publicadas na Folha de São Paulo.

O gênero se firmou de tal forma dentro da imprensa brasileira que todo jornalista com alguma ambição se prepara para um dia conseguir estrear a sua coluna de cronista. Poucos chegam lá. Dos jornalistas da geração que se inciou nas redações nos anos 80, Arthur Dapieve conseguiu a proeza e vem se dedicando abnegadamente ao ofício desde 1993. É verdade que a geração de Dapieve diminuiu a pátina literária da crônica. Praticaram principalmente, ainda que não de maneira exclusiva, o que Afrânio Coutinho classificou como crônica informativa. Isso se deu certamente porque todos vinham de carreiras nas seções de cultura, resenhando discos, livros, filmes. Esta geração tentou de qualquer jeito investir pela seara literária apostando eventualmente em uma “crônica narrativa” (próxima do conto, seguindo mais uma categorização de Afrânio Coutinho) ou trabalhando seus dotes para a escrita ficcional, fabular, em livros planejados com este fim.

Antes de sua estreia ficcional, Dapieve esteve no Jornal do Brasil onde se inciou com seu texto classudo trabalhando como repórter na redação do prédio da Avenida Brasil 500 nos anos de 1980. Tratou de preparar posteriormente dois livros-reportagem que consolidariam sua trajetória de jornalista nas décadas seguintes. Fez os ótimos “BRock” (Editora 34, 1995), contando sua vivência do rock brasileiro oitentista, e “Renato Russo – o Trovador Solitário” (Relume Dumará, 2000), biografia do líder da Legião Urbana. Escreveu também um trabalho acadêmico, “Morreu na Contramão – o Suicídio como Notícia” (Jorge Zahar Editor, 2007), resultado de uma pesquisa de mestrado. Em seu estudo de pós-graduação, Dapieve procede de início a um apanhado sobre como autores-chave no debate sociológico-filosófico (Durkheim, Marx, Camus) trataram, examinaram e discutiram o suicídio. Em seguida, parte para mostrar a forma cuidadosa, e por vezes tendenciosa, com que a imprensa estampou e continua a estampar o “to be or not to be” (para Camus, segundo Dapieve, a única pergunta fundamental a ser feita) em suas páginas.

Sua prática ficcional é posterior aos livros-reportagem e anterior a esta pesquisa. Ela teve sua estreia com “De Cada Amor Tu Herdarás Só o Cinismo” (Objetiva, 2004), seguiu com “Black Music” (Objetiva, 2008) e acaba de somar um terceiro título à lista com a edição de “Maracanazo” (Alfaguara, 2015), lançado no finalzinho do ano passado. “Maracanzo” reúne 5 contos, embora o último escrito, que dá nome ao livro, possa ser entendido como uma novela em função de sua significativa extensão. Nesta novela, temos a retomada do tom do primeiro romance de Dapieve. Ainda que a narrativa não guarde relação direta com seu livro de estreia, a escrita segue orquestrada por alguém que sabe criar cenas de alta qualidade literária entremeadas por diálogos certeiros.

Assim como “Fragmento da Paisagem”, segundo dos 5 contos do livro, “Maracanazo” tem como ponto de partida um acontecimento real: o jogo da Copa do Mundo de 2014 em que o Chile tirou a Espanha, campeã de 2010 e força maior do futebol de então, da disputa pelo título. Durante seu desenrolar uma eufórica filha de chilenos, Violeta, e um inconsolável espanhol, Victor, se conhecem e traduzem a rivalidade tanto histórica quanto futebolística entre os dois países. Do esporte de massas para a música das elites, vamos ter, em “Fragmento da Paisagem”, um senhor rememorando o encontro amoroso entre seus pais (começo de sua história) depois da audição do último registro da nona sinfonia de Mahler, regida por Bruno Walter em janeiro de 1938 em Viena. Trata-se da última apresentação pública da sinfonia antes do domínio nazista – resiste até hoje, registrada que foi em áudio.

Interessante ver como os leitores se alternam na escolha de seu conto predileto. Ciça Brandi gostou de “Bloqueio”. Conversando me disse que foi este o conto que mais a impressionou. Ian, meu sobrinho, seguiu a recomendação da dedicatória autográfica do autor e grudou na leitura de “Inverno, 1968”, recriação de mais um fato real: um dos últimos ensaios de Syd Barrett com seus companheiros do Pink Floyd. Eu gostei muito de “Maracanazo” mas o preferido foi o conto de abertura, “Tempo Ruim”. E isso por um motivo estritamente afetivo. Passei  a adolescência e pós-adolescência me esbaldando na praia de Copacabana e tenho para mim que falta uma narrativa épica para retratar a vida à beira-mar do carioca. Dapieve teve um primeiro insight, falta desdobrá-lo em uma aventura grandiosa (acho que Melville, o de “Redburn” principalmente, talvez fosse uma boa inspiração para isso).

Devoto e fiel seguidor de Zé Rubem, o escritor prepara, no entanto, um romance policial para dar sequência ao “Maracanazo”. “Táxi Argentino”, seu conto para o livro-coletânea “Rio Noir” (Leya, 2014), organizado pelo Titã Tony Bellotto, é o capítulo inicial do romance ao qual se dedica. Ao que tudo indica, deve prevalecer o climão policialesco de “Black Music”. Vamos acompanhar o detetive Cabeção e seu ajudante Aguiar para saber por que uma loura falsificada de vestido preto foi acabar dependura em uma das encostas do Cristo Redentor. Será que o traveco Candy Spears e seu companheiro de noitada, Lipe (ou por extenso, Felipe Krauss Barreto), têm alguma coisa a ver com isso? É esperar para saber.

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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Uma resposta para Jornalismo, Literatura e o “Maracanazo”

  1. ana maria souza disse:

    Como sempre muito cuidadoso informativo e mais importante gostoso de ler.

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